Além dos mais de 700 mil mortos
pela covid-19 no Brasil, há outras 284 mil vítimas indiretas: crianças e
adolescentes que perderam os pais, avós ou outros familiares mais velhos que
exerciam papel de cuidado em suas residências. O número se refere somente a
2020 e 2021, os piores anos da pandemia. Entre elas, 149 mil perderam o pai, a
mãe ou os dois.
A estimativa é de pesquisadores
ingleses, brasileiros e americanos, que acabam de lançar um estudo para
demonstrar não somente a “magnitude da orfandade no Brasil”, como também “as
grandes desigualdades entre os estados".
Uma das autoras do estudo, a
professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo
Lorena Barberia destaca que os impactos de uma emergência sanitária são
identificados primeiro entre as vítimas diretas, mas há também aqueles que são
afetados por essas mortes.
"Nós quisemos olhar a
vulnerabilidade das pessoas que dependem de quem faleceu. Achamos super
importante lembrar que as pessoas acima de 60 anos não só tinham mais chance de
morrer, mas, muitas vezes, tinham um papel na estrutura familiar muito
decisivo. Muitas crianças e adolescentes dependiam dessas pessoas. Então,
pensamos que tínhamos que considerar essas estimativas, tanto de pais e mães
como desses responsáveis".
A partir de modelos estatísticos,
alimentados por dados demográficos, como a taxa de natalidade e o excesso de
mortalidade mortes acima do esperado em 2020 e 2021, a pesquisa chegou a
algumas estimativas:
Cerca de 1,3 milhão de crianças
ou adolescentes, de 0 a 17 anos, perderam um ou ambos os pais, ou algum
cuidador com quem elas viviam, por razões diversas;
Dessas, 284 mil se tornaram órfãos ou perderam esse cuidador por causa da
covid-19;
Com relação apenas às mortes por covid-19, 149 mil crianças e adolescentes se
tornaram órfãos e 135 mil perderam outro familiar cuidador;
70,5% dos órfãos perderam o pai;
29,4%, a mãe; e 160 crianças e adolescentes foram vítimas de orfandade dupla;
2,8 crianças ou adolescentes a
cada 1 mil perderam um ou ambos os pais, ou algum familiar cuidador por
covid-19;
Entre estados, as maiores taxas
de orfandade são as do Mato Grosso (4,4), Rondônia (4,3) e Mato Grosso do Sul
(3,8), enquanto as menores são do Rio Grande do Norte (2,0), Santa Catarina
(1,6) e Pará (1,4).
Órfãos reais
Em 2021, Ana Lúcia Lopes, hoje
com 50 anos, perdeu o companheiro, o fotógrafo Cláudio da Silva, o que fez com
que seu filho, Bento, que tinha 4 anos, ficasse órfão de pai. Ela lembra que
esses números dizem respeito a crianças e adolescentes reais, que sofreram e
continuam sofrendo com as mortes de seus entes queridos.
Sem nenhum fator de risco para a
doença, ele tinha 45 anos e foi infectado durante uma viagem a trabalho. Com
sintomas respiratórios, foi internado em uma quinta-feira, entubado na sexta e
não resistiu após uma parada cardíaca, na segunda-feira seguinte. Nem pode
rever o filho, após os dois meses de trabalho fora de casa.
“Eu contei para o Bento logo que
aconteceu. A gente tinha um cachorrinho que morreu um pouco antes. Aí, eu falei
para ele que o cachorrinho precisava de alguém lá no céu para cuidar dele e que
o papai tinha ido fazer isso. Às vezes ele me via chorando e falava: "Mãe,
você tá chorando por causa do meu pai?".
"Apesar de tudo, no começo,
ele parecia bem. Um tempo depois, quando ele foi mudar de classe na escola, ele
começou a chorar bastante, porque não queria perder a professora. Aí, eu
perguntei o que ele estava sentindo, e ele disse: ‘Ah, mãe, acho que eu queria
o meu pai’. Foi quando ele começou o atendimento psicológico".
Cláudio recolhia a contribuição
previdenciária referente ao seu trabalho como microempreendedor individual, o
que garantiu a Bento a pensão por morte e evitou que a família passasse por
problemas financeiros. De acordo com outra autora do estudo, a promotora de
justiça da cidade de Campinas (SP) Andréa Santos Souza, os problemas
financeiros são os mais frequentes em situações de orfandade.
Violações de direitos
Durante a pandemia de covid-19, o
trabalho de Andrea Santos Souza, que atua na área de Infância e Juventude na
cidade de Campinas (SP), estava bastante focado na proteção das crianças e
adolescentes afetados pelo fechamento das escolas, pela miséria pandêmica, ou
pela crescente violência familiar. Até que ela percebeu um aumento nos pedidos
de guarda, feitos por tios, avós e outros parentes.
“Essas crianças estavam ficando
órfãs sem uma representação legal. Pedi aos cartórios que me mandassem todas as
certidões de óbito das pessoas que morreram por Covid e que deixaram herdeiros
menores. Num primeiro momento, eles disseram que não conseguiam fazer esse
recorte, então, eles me mandaram todas as certidões de quem morreu naquele ano
de 2020. Foram mais de 3 mil, e foi um trabalho muito triste. Eu, uma
estagiária e uma funcionária ficamos olhando certidão por certidão, separando
todos os órfãos. Numa primeira leva, nós localizamos quase 500 crianças”,
lembra Andrea.
A partir daí, o trabalho
duplicou: as certidões continuavam chegando, e, ao mesmo tempo, era preciso
localizar todas essas crianças, encaminhá-las para programas de assistência,
checar se já constavam no Cadastro Único no Governo Federal e se as famílias já
recebiam o Bolsa Família ou o Auxílio Emergencial. Era preciso ainda verificar
se elas não estavam sendo vítimas de outras violações, além de terem perdido
suas mães e pais.
“A primeira delas é a separação
de irmãos, né? As famílias numerosas separam os irmãos. Quanto aos bebezinhos
muito pequenos, tem o problema de adoções ilegais. As meninas tinham situações
de exploração de todas as formas, trabalho doméstico forçado, casamento
infantil, abuso sexual… Em muitos meninos, a gente via o direcionamento para o
tráfico ilícito de entorpecente ou exploração do trabalho infantil…”
Além dessas situações mais
drásticas, Andréa enfatiza que toda orfandade aumenta a vulnerabilidade,
especialmente nos casos minoritários de crianças que perderam tanto a mãe
quanto o pai, ou daquelas que já eram criadas por mães solo, quantidade
bastante frequente. Os profissionais de saúde que morreram e deixaram filhos
eram numerosos, mas, como a pandemia escancarou desigualdades sociais, a
maioria dos órfãos era de filhos de trabalhadores de limpeza, alimentação,
transporte ou informais, que não puderam parar e se isolar em casa.
Diante de exemplos tão trágicos,
a promotora buscava entender melhor a dimensão da orfandade causada pela
covid-19 no Brasil, quando as primeiras estimativas globais sobre a tragédia
foram lançadas por pesquisadores do Imperial College, de Londres, na
Inglaterra, em julho de 2021. Andréa entrou em contato com os pesquisadores,
contou sobre a sua experiência localizando os órfãos de Campinas e, a partir
daí, passou a colaborar com o grupo de estudos, que é o mesmo responsável pelas
novas estimativas.
Cruzamento de dados
Graças ao encontro com Andréa, os
pesquisadores puderam comparar o resultado dos modelos estatísticos com os
dados da promotoria, e confirmar as semelhanças. Conheceram também outra
ferramenta dos registros civis brasileiros, que é quase única no mundo. Desde
2015, as certidões de nascimento já são emitidas em conjunto com o CPF e,
quando o documento é registrado, os cartórios associam o número das crianças ao
CPF dos pais, o que permite o cruzamento de informações, inclusive em casos de
orfandade.
Com isso, a Associação Nacional
dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen/Brasil) verificou que, de março de
2020 a setembro de 2021, 12,2 mil crianças de até 6 anos ficaram órfãos por
causa da covid-19, com proporções similares de mortes maternas e paternas, e de
ocorrências ao longo dos meses. Como os dados da Arpen cobrem apenas as
crianças nascidas de 2015 para cá ou aquelas que tiveram a certidão de
nascimento reemitida, não seria possível saber a dimensão da orfandade apenas
por eles, mas os registros serviram para reforçar a validade das estimativas do
estudo.
“O objetivo é lembrar que, mesmo
depois do fim da pandemia, nós precisamos de políticas públicas para dirimir as
desigualdades provocadas pela pandemia, porque nós sabemos que algumas pessoas
saíram em uma situação muito mais vulnerável que outras. Não houve um programa
desenhado para essas crianças especificamente, e a sociedade não estava
acostumada a essa magnitude de órfãos. Os programas que existem claramente
precisam ser fortalecidos, porque temos um grupo novo de crianças e
adolescentes, que não era esperado", reforça a pesquisadora Lorena
Barberia.
Fonte: Diário de Pernambuco.


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