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| Imagem: Leandro Couri |
Quando assumiu o governo federal, um dos principais compromissos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) era dificultar o acesso às armas no Brasil, após quatro anos de flexibilizações nunca antes vistas na história do país durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL). O decreto que limitou o acesso a esses produtos a partir dos certificados de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs) foi assinado em julho do ano passado. Apesar dos esforços, de acordo com números obtidos pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas via Lei de Acesso à Informação (LAI), o governo não conseguiu frear totalmente o acesso desse público a itens bélicos.
Em 31 de dezembro de 2022, no último dia do governo Bolsonaro, o Brasil tinha 1.786.536 registros de CACs: 449.230 colecionadores, 779.102 atiradores e 558.204 caçadores. Em junho deste ano, quase 12 meses após a assinatura do decreto que voltou a restringir o acesso ao armamento, o total de certificados subiu para 1.867.558, um aumento de quase 5%: 472.257 colecionadores, 815.688 atiradores e 579.613 caçadores. Vale ressaltar que esse dado não representa um número exato de pessoas, já que um mesmo CPF pode estar inscrito em mais de uma categoria.
O número de armas à disposição dos CACs também aumentou durante o governo Lula. Em dezembro de 2022, o Brasil tinha 1.277.170 itens nas mãos de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores. Hoje, esse dado alcança a marca de 1.366.845, uma alta de 7%. Das três categorias, houve somente recuo no total de armas entre os colecionadores: de 92.374 em 2022 para 48.284 atualmente (queda de 48%). No caso dos atiradores, essa soma subiu de 1.047.940 para 1.154.448 (crescimento de 10%), enquanto entre os caçadores saiu de 136.856 para 164.113 (alta de 20%).
Mas, o que explica a alta dos números mesmo com políticas públicas que tinham objetivo contrário? Para a gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, é preciso destacar que os CACs que adquiriram armas durante o governo Bolsonaro não foram obrigados a devolver suas compras bélicas após o decreto de Lula. Ainda assim, ela se diz surpresa com as altas.
“São números que surpreendem um pouco. Era esperado que esse mercado não deixaria de existir de um dia para o outro. Uma hipótese para esse aumento é um possível enraizamento da cultura do acesso às armas no Brasil, depois do total descontrole entre 2019 e 2022. Uma outra possibilidade seria uma eventual renovação dos acervos dos CACs, já que muitos calibres antes permitidos não podem mais ser enquadrados nas três categorias”, diz.
Sobre a diminuição do número de armas entre os colecionadores, Natália Pollachi aponta que o decreto de Lula restringiu o enquadramento de armamentos fabricados recentemente nessa categoria. Em suma, o raciocínio é o seguinte: uma arma de colecionador automática ou semiautomática longa de calibre restrito precisa ter seu primeiro lote de fabricação registrado há pelo menos 70 anos, o que exclui uma série de itens que antes se encaixavam nessa classificação.
“Isso foi importante, porque a gente já teve relatos de intercâmbio de categorias, como um colecionador que usa sua arma para atirar esportivamente ou caçar”, diz a especialista do Instituto Sou da Paz. Outra mudança reconhecida por ela é a criação de níveis para os atiradores. “No nível 1, você pode comprar quatro armas, que já é uma quantidade bem grande. No nível mais alto, aquele atleta que participa de competições internacionais, é permitido comprar até 16”, afirma.
Ainda assim,
a gerente do Sou da Paz alerta para pontos de melhoria na política pública do
atual governo. Ela lembra que o Brasil sempre teve uma dificuldade de
fiscalização dos CACs. Resumindo: não adianta ter regras restritas se não há
acompanhamento das autoridades sobre possíveis infrações. “O decreto previu que
a fiscalização dos CACs fosse feita pela Polícia Federal (PF). Uma auditoria do
TCU (Tribunal de Contas da União) concluiu que o controle, antes feito pelo
Exército, era muito precário. Essa mudança foi positiva, mas é importante que a
PF receba os recursos, as bases de dados e os investimentos para que o problema
não troque de instituição”, alerta.
Muito antes
da campanha de 2022, a disputa de narrativas sobre o acesso às armas era um
atributo muito usado no inventário da guerra entre o lulopetismo e o
bolsonarismo. No atual governo, apesar do decreto em vigor, esse embate ainda
permanece, tendo o Congresso Nacional como um dos protagonistas da artilharia.
Em 28 de
maio, a Câmara aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 206/2024, que
derruba parte da medida restritiva de Lula. A votação foi tão avassaladora que
aconteceu de maneira simbólica: apenas os deputados da federação Psol-Rede se
posicionaram contra, ou seja, até mesmo os parlamentares do PT ficaram a favor.
O texto, que aguarda apreciação do Senado Federal, tem autoria de seis
políticos: Ismael Alexandrino (PSD-GO), Dr. Fernando Máximo (União-RO),
Delegada Katarina (PSD-SE), Rodrigo Estacho (PSD-PR), Capitão Alden (PL-BA) e
Delegado Fabio Costa (Progressistas-AL).
Uma das
flexibilizações do texto seria a retirada da regra que obriga os desportistas a
frequentar seu clube de tiro ou participar de competições a cada 12 meses,
justamente para comprovar o exercício da modalidade. Além disso, também cairia
a proibição de instalação de clubes de tiro no perímetro de um quilômetro de
escolas.
Outra mudança beneficiaria os colecionadores. A ideia é tirar do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a responsabilidade do julgamento dos pedidos, passando essa avaliação dos itens bélicos considerados históricos para o Comando do Exército.
“Esse
decreto (assinado por Lula) ainda não está solidificado, porque está em
constante disputa política no Congresso Nacional. Uma eventual nova
flexibilização tem uma série de riscos. O mais evidente é a instrumentalização
dessas políticas mais frouxas pelo crime organizado. Parte das armas que não
era acessível no mercado civil foi cooptada pelo crime organizado. É muito mais
fácil e mais barato roubar ou furtar a população civil do que participar de um
grande esquema de tráfico armamentista internacional, por exemplo”, diz Natália
Pollachi, gerente do Instituto Sou da Paz.
Um dos
responsáveis pelo clube de tiro Calibre 357, no Bairro Cachoeirinha, Região
Nordeste de BH, um atirador esportivo que preferiu não se identificar critica o
tratamento dado por Lula aos CACs. Para ele, a modalidade foi politizada. “Eu
atiro esportivamente há décadas. Toda a minha família também pratica: minha
esposa e minhas filhas. É uma tradição. Só que hoje ficou muito difícil
continuar. Chegamos a abrir mão de competições, porque um rifle meu não pode
mais ser usado. Essa arma está cadastrada como caçadora, então não posso usá-la
para competir. Também não posso mais emprestar equipamentos que estão no meu
cadastro para minha esposa, o que encarece bastante também”, diz.
O homem
conta que o clube de tiro onde trabalha cobra hoje cerca de R$ 1,6 mil para
obter o certificado de registro de CAC para algum interessado. Esse valor já
inclui o serviço do despachante e a taxa de anuidade do empreendimento
comercial. “O primeiro passo é estar vinculado à uma entidade de tiro e passar
pelos testes de mira e psicológico. O técnico é feito por um instrutor
credenciado, e o psicológico por uma clínica credenciada junto à PF. Também é
preciso ter todas as certidões negativas (de antecedentes criminais). Depois,
você manda toda documentação para o Exército, que vai analisar e lhe conceder
ou não o certificado de registro”, explica.
O atirador
esportivo dá mais detalhes sobre os investimentos necessários para se tornar um
CAC. “Só depois desse certificado do Exército que você pode entrar com o pedido
de compra de uma arma. Isso tudo fica entre R$ 1,6 mil e R$ 1,8 mil, variando
de acordo com o despachante e a taxa de anuidade do clube. O preço da arma
varia bastante. Você tem de R$ 3,5 mil até R$ 15 mil, considerando as de
fabricação nacional. As importadas são bem mais caras, custam no mínimo R$ 40
mil”, afirma.
Sobre a
diminuição no número de armas entre os colecionadores por conta das exigências
técnicas do governo, o atirador esportivo afirma que a situação incomodou a
comunidade dos CAC’s. Ele critica, inclusive, o presidente do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Leandro Grass, que acabou
com um braço da entidade até então dedicado à preservação de itens bélicos.
Na
oportunidade, Grass disse que “armas de fogo não são patrimônio cultural, elas
matam”, ponto criticado pelo homem ouvido em sigilo. “Veja só, tenho um amigo
com grande poder aquisitivo que compra carros de luxo com frequência. São
carros novos, mas ele compra porque quer colecionar. Achei a atitude do
presidente do Iphan muito infeliz. Politizaram a questão”, diz.
Tratam-se
dos títulos de colecionador, atirador esportivo e caçador. O cadastro é feito
pelo Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados do Comando do Exército,
pela internet. Além dos documentos pessoais, o interessado precisa apresentar
laudos de aptidão psicológica e de capacidade técnica. A filiação a clubes de
tiro é obrigatória para atiradores e caçadores. A taxa junto ao governo é de R$
100. O documento tem validade de 10 anos.
Reportagem do Estado de Minas para o Diário de Pernambuco.
Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2024/07/mesmo-com-restricoes-numero-de-armas-com-cacs-aumenta-na-gestao-lula.html



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